Wednesday, October 28, 2009

A Estrutura Elementar da Compreensão: inferência e dependência

Queridos,

Mais abaixo, seguem as notas do último tópico de aulas: entramos na discussão sobre a estrutura elementar da compreensão e nos rudimentos da inferência enquanto modalidade da significação.

Divirtam-se,

Benjamim

Semiótica - COM 102

Aula no 3 – A Estrutura Elementar da Compreensão

3.1. O “princípio da dependência” e os modos inferenciais da compreensão

1. Falamos até aqui de um certo “fundo especulativo”, do qual se originam certos problemas que caracterizam as teorias semióticas em geral: especialmente, nos devotamos às questões sobre o caráter daquilo que há, e arrematamos a exposição com a indicação de que o olhar da semiótica sobre questões metafísicas implica a admissão de que, em última instância, são os processos de significação constituem o mundo ao qual nos reportamos, quando falamos dele, o pensamos ou até mesmo o percebemos.

2. Nesse sentido, não é que uma teoria semiótica nasça necessariamente de uma negação dos problemas metafísicos, mas certamente de uma outra posição, no que respeita a concepção sobre o que significa dizer que alguma coisa : de um ponto de vista semiótico, a existência é sempre assunto relativo aos regimes e modos característicos de nossa compreensão; pois é precisamente sobre a natureza desses regimes que precisamos falar, a partir de agora.

3. Tomemos em causa agora a noção de que a existência independe de nossos modos de compreendê-la: o postulado de que as coisas que conhecemos manifestam-se com uma indiferença ontológica no que respeita os modos como nos tornamos cientes delas é a de que a realidade se dá como pura singularidade, isto é: cada coisa que há persiste no mundo com absoluta independência em relação a qualquer outra coisa ou ainda, em relação aos modos como somos capazes de pensá-las ou discriminá-las. No jargão de uma certa escola filosófica, fala-se na atomicidade de tudo aquilo que há, de tudo o que é o caso, de modo que uma ocorrência no mundo se explica por sua própria individualidade, e não por qualquer recurso de comparação com outras coisas do mundo que com elas se assemelhem ou se oponham.

4. Do ponto de vista de uma teoria semiótica, uma tal concepção sobre o que existe é, por definição, insustentável, a partir do momento em que examinarmos, na prática, como é que as coisas que existem se tornam pertinentes para uma inteligência raciocindadora: assim sendo, um objeto manifesto no mundo não vale como o que é, en soi-même, como decorrência de sua pura individualidade ou como dado singular e independente de certas condições estruturais de sua apreensão; ao contrário, é o que é pelos modos e condições nas quais esta ocorrência pode ser correlacionada, comparada, comensurada com respeito a alguma outra ou a uma série ou classe delas, ou ainda, pelo fato de que esta realidade pode ser reportada em seu aspecto de generalidade, como conceito ou idéia.

5. A passagem daquilo que há para o ser é sempre decorrência da correlação deste aliquid (sobre o qual falamos) a um outro algo a que nos reportamos para auxiliar na determinação de sua própria realidade: aquilo que há estará sempre na dependência de um outro algo (um aliquo), seja de que natureza ele for (seja da ordem de outra coisa existente, seja da ordem de uma idéia ou conceito, ou seja, de um objeto abstrato).

6. Se, por outro lado, nos recordarmos daquilo que afirma Eco sobre o caráter sistemático (portanto regular e transmissível) dos fenômenos culturais, aquilo que faz de nossa relação com os objetos externos algo que os torna reais (ou ainda, significativos), tudo isto decorre do modo como nosso contato com o mundo assume o aspecto de uma regra de uso, cujo fundamento é o fato de que as coisas que sabemos não se manifestam como singulares, mas como ocorrências de um tipo geral. O relação caracteristicamente instrumental que mantemos com a natureza somente se torna algo de interessante ao olhar das teorias da significação quando incorporado ao sentido de uma norma cultural que seu uso continuado acaba por sedimentar: na gênese desta normalidade, está o princípio da comparabilidade que demarca o modo como somos capazes de conhecer e atribuir valor de existência a um dado do mundo.

7. No caso da compreensão sobre um fato exterior à nossa consciência, vemos que qualquer coisa que nos ocorra à experiência como significativa, assim o é por estar coligada com algo mais (seja esse algo um outro dado singular ou então uma classe de objetos) ou ainda com algum aspecto pelo qual sua presença é requisitada (um traço de sua morfologia, um dado de sua utilidade, entre tantos outros): mais importante, essa coligação funciona num regime de compreensão no qual a exterioridade manifesta do objeto não é necessariamente determinante daquilo que nos dá esse mesmo objeto a conhecer.

8. Consideremos a economia interna desse regime de nossa compreensão, e chamemo-lo pelo princípio mesmo de seu funcionamento, como uma “regra da dependência”, assim enunciada: segundo este princípio, não haverá nada que esteja ao alcance de nossa compreensão (seja qual for o seu regime em que ela o requisite), sem que associemos estes objetos de nossa experiência a outras coisas, classes ou aspectos de coisas com os quais ele pode manter algum tipo de relação; e mesmo se pensarmos naquilo que nos ocorre por um primeiro instante como sendo significativo (como uma primeira impressão acerca de algo, ou como nosso primeiro contato com algo de inédito), não devemos confundir a aparente novidade deste dado, este aspecto supostamente inaugural do objeto da compreensão, com o caráter inaugural do regime no qual compreendemos essas mesmas coisas.

9. Quando o que nos ocorre à experiência é um fato absolutamente novo, não devemos supor que este último se dê deste modo para uma consciência, pois ela será sempre capaz de coordená-lo com os aspectos desta ocorrência que exibem alguma similaridade com fatos já conhecidos (o que significa que uma regra de comparação entra em jogo, na nossa cogitação sobre aquilo que nos ocorre pela primeira vez): um dos aspectos da estrutura na qual conhecemos realidades é o de que nada do que se depara conosco deixa de ter concernimento ou relação com algo que já sabemos (nada nos é absolutamente novo, nesse sentido, mas sempre inaugural na relação com aquilo que já sabemos, e mediante o qual ponderamos e avaliamos, enquanto novidade). Devemos estabelecer, portanto, uma demarcação entre a natureza de tudo o que compreendemos e, por outro lado, o como compreendemos: evidentemente, de uma perspectiva semiótica, o último item nos interessa mais do que o primeiro.

10. De um lado, já mencionamos que o “princípio da dependência” nos impede de tomar a factualidade de uma ocorrência do mundo como um fenômeno puramente atômico em seu valor de referência para uma consciência: do ponto de vista da especulação sobre o assunto, já estamos suficientemente cientes de que este algo que tenho diante de mim é, por definição, relativo a alguma outra coisa, no modo como ele se torna existente, para mim. Como já vimos em aulas anteriores, o que torna um objeto algo distinto à consciência para a qual ele se apresenta tem menos a ver com o caráter de pura apresentação de sua realidade, e mais com a aspectualidade mediante a qual a consciência é capaz de se reportar a este objeto. Os modos de manifestação deste mecanismo são variados, mas o dado mais importante a se considerar na questão é que, ao nos referirmos à dependência de um fato com respeito a outros, estamos falando de uma propriedade da consciência e não necessariamente dos fatos isolados entre si.

11. Detenhamo-nos um pouco mais, entretanto, sobre a relação mesma que é constitutiva do modo como conhecemos fatos: assim sendo, um fato depreende sua individualidade não de sua singular ocorrência, mas em razão de poder estar coligado com outro fato ou aspectos de fatos (em termos, por estar configurado no contexto mais completo de um “estado de coisas”). A modalidade de compreensão que se exprime tendo por objeto não os fatos em si, mas as relações entre eles pode ser chamada de uma modalidade inferencial da compreensão: as inferências se definem precisamente como um modo de conhecer coisas ou estados de coisas que se definem por um tipo específico de relação entre termos (ou entre proposições que falam destes termos (seja na condição de sujeitos ou de predicados).

12. Em boa medida (e foi assim que a lógica aristotélica nos legou o problema da dedução formal), ao falarmos de uma modalidade inferencial de implicação, estamos nos reportando a um modo de descrever nosso pensamento, a partir da definição de sua estrutura interna, ou de sua forma: quando falamos de fatos sobre aos quais nos reportamos, o modo de raciocinar que nos é próprio põe em movimento um traço da remissão às coisas do mundo (real ou possível) que é, por sua vez, estruturado através de uma implicatura (manifesta, como veremos, na forma do “se x, logo y”).

13. Mais do que isto, estamos falando de uma estrutura de nossa remissão ao mundo que se pauta por um critério de verdade, e que é da ordem de uma necessidade instaurada pelo próprio movimento de implicação, formalmente estruturante do pensamento: assim sendo, não há nada de absolutamente exterior na determinação de uma veridição, em termos lógico-inferenciais; é o mecanismo mesmo da implicação que parece instaurar a validade dos modos como relacionamos objetos, fatos, aspectos e estados de coisas. De todo modo, esta relação de implicação tem um valor universal, de tal modo que, ao estabelecer uma conclusão a partir de determinados fatos, é necessário que nosso modo de pensar esteja de acordo com o que é universalmente aceito como implicação entre fatos.

14. Alguns casos de pensamento inferencial:

• o raciocínio implicador das previsões do tempo (“as nuvens indicam chuva iminente”), que guardam similitude estrutural com os casos clássicos de juízos sobre matéria de fato, como “se fumaça, logo fogo” (a implicação, nestes casos, é de uma necessidade puramente causal, mecânica, e se desenvolve no eixo do tempo, do passado para o futuro e vice-versa);

• o raciocínio do investigador (seja ele um detetiva, um clínico ou mesmo um jornalista): neste caso, a verdade relativa a esta implicação não pré-existe (a não ser na condição de haver um fato passado ao qual se tenta recobrar, retrospectivamente) como condição do raciocínio, mas é, em boa medida, como que construída pela habilidade (ou pelos pressupostos) do intérprete em arranjar os elementos presentes à consciência, estabelecendo para eles conexões supostamente inauditas, mas que, ao fim, podem se revelar como verdadeiras ou, melhor, “válidas”;

Referências Bibliográficas:

Guinzburg, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. In: Mitos, Emblemas, Sinais.

Volli, Ugo. "Interpretação". In: Manual de Semiótica.

Próximas Leituras:

Eco, Umberto. “Signo e inferência”. In: Semiótica e Filosofia da Linguagem;

Peirce, Charles Sanders. “Algumas consequências de quarto incapacidades”. In: Semiótica.

Wednesday, October 21, 2009

2a Avaliação Parcial

Queridos,

Segue abaixo a 2a avaliação parcial, como prometido. Reitero a todos que recolherei as respostas de todos na próxima quarta-feira, no início da aula. Nos vemos na semana que vem.

Ad,

Benjamim

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO

DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO

Disciplina: Semiótica (COM 102)

Professor: Benjamim Picado

Horário: 2as e 4as, das 07 às 09:00

Local: Sala 04, Facom/Ondina

2a AVALIAÇÃO PARCIAL

1. Discorra breve mas suficientemente sobre as relações entre o estudo dos signos e o universo dos fenômenos culturais, procurando articular em sua argumentação as leituras dos textos de Umberto Eco, Iuri Lotman e Julia Kristeva.

2. Considere a seguinte matéria, publicada na revista Época, em 04 de junho de 2007:



Tendo em vista o assunto da reportagem em questão, como vc. avaliaria a questão da manifestação das emoções, no universo animal, à luz das teses manifestas nos textos de base da unidade, especialmente tendo em conta a concepção antropológica da cultura, visada pelos estudos semióticos?

Referências Bibliográficas:



Eco, Umberto. “Introdução: rumo a uma lógica da cultura”. In: Tratado Geral de Semiótica;

Kristeva, Julia. “A Semiótica”. In: História da Linguagem;

Lotman, Iuri. “Sobre o problema da tipologia da cultura”. In: Semiótica Russa

necessitas feriis caret

Tuesday, October 20, 2009

AVISO

Queridos,

Já mencionei isto na introdução às notas das últimas aulas, mas reitero o ponto aqui: não teremos aula na segunda-feira, dia 26/10, em função do feriado do servidor público (fato alheio, como disse, à minha vontade). Em razão disto, apenas disponibilizarei as questões da segunda avaliação parcial amanhã à noite, no habitual intervalo entre o Jornal Nacional e Viver a Vida.

Ad,

Benjamim

A cultura como fato de comunicação

Queridos,

Seguem mais abaixo as notas referentes ao último item de exposição da segunda unidade. Como tive a confirmação de que não haverá aula na próxima segunda-feira, deixarei para disponibilizar as questões da avaliação referente a este ponto na próxima aula, no dia de amanhã.

Ad,

Benjamim

Semiótica - COM 102 – Aula no 2

O estudo dos signos e a “lógica da cultura”

2.2. A cultura como fato de comunicação e como sistema de significação

1. Vimos, no item anterior de nossas exposições, que o estudo dos signos é determinado por uma consideração prévia sobre a ordenação cultural dos fatos humanos, o que caracterizaria o assim chamado fundo antropológico que seria próprio a estas teorias. Mas a proposição desta cláusula de origem dos saberes semióticos ainda deixa num certo vazio aquilo a que se poderia chamar de “cultura”, enquanto fenômeno observado ou mesmo como matriz conceitual da caracterização da experiência tipicamente humana.

2. Em termos, precisamos nos interrogar não tanto sobre os modos nos quais a significação se assimila ao conceito de cultura, mas em que medida não apenas o estudo dos signos oferece uma maior clareza aos debates acerca daquilo que define a cultura enquanto marco de nossa condição ontological de gênero: enfim, qual é mesmo o conceito de cultura que nos permite assimilar ao estudo de seus fenômenos o valor característico de noções como a de “signo” e “significação”.

3. Uma boa maneira de formular estas questões implica em que nos voltemos para as definições de dicionário de “semiótica” e “semiologia” apresentadas anteriormente e nos interroguemos sobre a propriedade com a qual elas assimilam o estudo dos signos e dos sistemas de significação à ordem dos fenômenos culturais. Este é o ponto que devemos desenvolver, doravante, em nossa exposição. Ele implica, em primeiro lugar, que reconheçamos, de antemão, a validade de uma assimilação da significação à ordem da partilha cultural dos sentidos, mas pede que nos dediquemos, a partir daí, a uma pergunta sobre o coceito mesmo de cultura, uma vez dado este pressuposto.

4. Invertamos por um momento a questão original, para nos perguntarmos agora sobre o que caracteriza, afinal de contas, um fato cultural, como fenômeno pertinente a um estudo semiótico? Ou ainda: o que conferirá a um fato qualquer o status de um fenômeno a ser estudado, na perspectiva de uma teoria da cultura, e de que modo seu estudo como fenômeno sígnico pode torná-lo pertinente em sua dimensão de fato que se explica pelo princípio da partilha cultural de sua raison d’être? A leitura dos textos de Umberto Eco e de Julia Kristeva foi desenhada para nos elucidar precisamente acerca de aspectos específicos dessa questão geral: exploremos com algum vagar o que eles nos têm a dizer sobre este ponto.

5. Nas últimas partes da introdução de seu Trattato, Umberto Eco assinala três ordens de fatos humanos que podem ser estudados na perspectiva de uma ciência da cultura, na medida mesma em que são concebidos enquanto fenômenos sígnicos. São os seguintes: a. a produção e o uso de objetos que transformam a relação homem/natureza; b. as relações familiares como núcleo primário de relações sociais institucionalizadas; c. a troca de bens econômicos. Vejamos cada um desses casos:

· 2001, a Space Odissey, de Stanley Kubrick (1968)

6. Em primeiro lugar, a produção e o uso de objetos: segundo Umberto Eco, o uso puramente instrumental de objetos não caracteriza necessariamente uma ordem de fatos que seja estudável na perspectiva dos fenômenos culturais. No reino animal, encontramos inúmeros exemplos da instrumentação da natureza com fins variados (habitação, proteção, disfarce), já que o estabelecimento desta função não se constitui com base em um tipo de valor sistemático da ação instrumental (sua finalidade é a única razão de ser do ato, no reino animal).

7. Na ordem dos fatos culturais, um aspecto decisivo do uso de objetos enquanto instrumentos está enraizado no caráter sistemático da ação instrumental (o fato, portanto, de que ela se deriva de, ou até mesmo é capaz de engendrar, uma regra de uso dos objetos, com fins instrumentais, regra esta que pode ser legada às gerações seguintes, sob a forma de um aprendizado igualmente sistemático). A dimensão cultural do ato se instura na medida em que uma função seja concebida como a estrutura deste mesmo ato: a função pela qual o ato é a instância mais particular de uma regra cultural mais geral.

· Eco, Umberto. “Introdução…”: p. 18

8. Em segundo lugar, as transmissões de vínculo familiar: a troca de mulheres em sociedades supostamente primitivas não pode ser visada apenas na perspectiva de sua valorização, enquanto fato civilizatório (não se pode supor que, em sociedades nas quais as mulheres sejam tomadas como objetos de uso, estejamos em um quadro comparativamente inferior da evolução das sociedades). Numa perspectiva própria à antropologia estrutural de Levi-Strauss (e, mais remotamente, à noção de troca enquanto dádiva, em Mauss), a troca de mulheres é estudada em seu aspecto de transmissão sistematicamente ordenada das relações de parentesco em todas as sociedades, de modo indistinto.

9. Neste contexto das trocas familiars (por intermédio de uma instância estruturalmente invariante, como o casamento em diferentes sociedades), o que se estabelece é um conjunto de alianças regrado por princípios daquilo que pode e não pode ser trocado (o que é firmado a partir de um sistema de valores determinado), no contexto de regras culturais aparentemente específicas de cada sociedade (mas que podem ser explicadas pela recorrência de certos princípios estruturais comuns a todas elas).

10. A idéia de que este sistema subterrâneo de valores opera invariavelmente, de modo independente das circunstâncias de diferentes formações clturais (mas, ainda assim, como traço característico das concepções e práticas humanas) manifesta-se naquilo que é genericamente interditado, como parte do sistema de trocas familiares: a caracterização do incesto como limite é, neste contexto, menos uma questão de proibição de um tipo de vínculo parental específico e mais o estabelecimento das condições nas quais a troca do parentesco se constitui legalmente nas sociedades humanas, em geral (ela não é nem um fato biológico-individual, tampouco explicável pela história de comunidades em particular, mas uma construção humana e social, de caráter universal e estruturalmente invariante).

· Kristeva, Julia. “A semiótica”: p. 417,418.

11. Terceiro exemplo, a troca de bens econômicos: na medida em que falamos de “troca” de objetos, no contexto de uma prática cultural determinada (a da negociação econômica), o sentido comunicacional do fenômeno se revela, em primeira instância (nas sociedades humanas, intercambiam-se objetos, com propósitos variados). Mais importante, este processo de troca não se dá de maneira absolutamente gratuita, mas está fundado num tipo de valorização sistemática dos objetos, no contexto mesmo da troca de bens (o velho problema do “valor de troca”, como acrescentado ao “valor de uso” das coisas).

12. O estabelecimento de um sistema dos valores pelos quais os objetos (agora tornados “bens”) podem ser comunicados entre si se constitui em um assunto que pode concernir ao olhar semiótico (especialmente quando consideramos a intrusão de um instrumento como o da “moeda”, e que serve como intermediador mais abstrato desse sistema de valores).

Ilha das Flores, Jorge Furtado (1989)

13. Em todos estes casos, vislumbramos alguns aspectos daquilo que interessa a uma teoria semiótica, quando aborda o universo de seus fenômenos de interesse, enquanto fatos ligados a um hipotético “sistema da cultura” mais geral: o uso de objetos, a troca familiar e as relações econômicas não constituem-se apenas como fatos explicáveis na ordem específica dos campos de conhecimento aos quais associamos estes fenômenos (a saber, a biologia, as teorias sociais ou a economia), mas deixam entrever uma dimensão de construção simbólica da realidade (na forma de um sistema socialmente partilhado de referências e de valores de sentido), sob os quais a particularidade destes fenômenos se sustenta como parte de um acervo das sociedades humanas, em geral, na sua relação com o mundo objetivo.

14. Com isso, Eco fica justificado em afirmar que os mecanismos fundamentais que caracterizam uma cultura, concebida em seu sentido antropológico (isto é, como concernente à caracterização do espírito humano em seus fundamentos e práticas), somente se revelam mais integralmente a uma análise, na medida em que são tomados enquanto fenômenos comunicacionais, e por sua vez sustentados em sistemas de significação: em cada uma dessas manifestações listadas por Eco (o caso de Kristeva não é dramaticamente distinto, e até mesmo estende para além a validade das teses do primeiro, já que inclui ao universo do alcance da steorias semióticas os fenômenos da expressão artística), fica comprovado que, tomadas na sua condição de fatos humanos, esses fenômenos podem ser estudados numa perspectiva que os valoriza a partir daquelas categorias que exploraremos em seguida, durante nosso percurso (em última análise, como partes de uma construção simbólica).

15. Em todos estes casos, temos um fenômeno cultural em vista, na medida em que a realidade de cada uma destas ordens de fatos se sustenta sobre uma pactuação sistemática dos valores que lhe seriam supostamente intrínsecos: assim sendo, o uso instrumental de objetos, por exemplo, não se perde na sua absoluta individualidade concreta, mas pode ser sempre repetido, em circunstâncias similares, como parte de uma função inerente à sua execução, e que é aquela pela qual normalmente aprendemos sua mecânica, quando ela nos é transmitida; e a transmissão mesma dessas práticas pelo aprendizado é um aspecto que as diferencia daquilo que se passa em contextos aparentemente similares, como em casos no mundo natural, já que o objeto deste ensinamento não é da ordem da pura replicação mecânica das práticas, mas, como vimos, da assimilação de seus aspectos estruturais.

16. Do mesmo modo, a troca parental não se determina na particularidade de uma biografia ou da história de uma sociedade, mas se enraiza em regras culturais que funcionam como uma “estrutura profunda” da gênese das relações sociais (através da transmissão das linhagens de prentesco, aprendemos um pouco sobre como as relações sociais se formam, em seu aspecto de regras e interdições culturais). O mesmo se dá, finalmente, com a troca de bens, vemos que o valor com o qual os objetos são intercambiados, num contexto econômico, não se explica na particularidade de seu valor de uso, mas na generalidade que o valor de troca lhe associa (e, com a visão do marxismo, vamos mais longe, ao descobrirmos as artimanhas pelas quais o sistema capitalista é capaz de reificar esta dimensão da troca, alienando-a da relação mais direta da mercadoria com sua finalidade de uso).

Leituras recomendadas:

Eco, Umberto. “Introdução: rumo a uma lógica da cultura”. In: Tratado Geral de Semiótica

Kristeva, Julia. “Semiótica”. In: História da Linguagem;

Próximas Leituras:

Guinzburg, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. In: Mitos, Emblemas, Sinais.

Volli, Ugo. "Interpretação". In: Manual de Semiótica.

Sunday, October 04, 2009

2a Unidade: O estudo dos signos e a "lógica da cultura"

Semiótica - COM 102 – Aula no 2

O estudo dos signos e a “lógica da cultura”

2.1. O “fundo antrooplógico” das teorias do signo e o conceito semiótico de cultura

1. Expondo o fundamento ontológico de toda pergunta pela significação, descobrimos que, ao se interrogarem pela natureza mesma do que há, certas teorias avançam o primado dos “sistemas simbólicos” e dos “esquemas conceituais”, pedindo que falemos do ser a partir de sua manifestação enquanto signo. Ora, nestas mesmas teorias se estabelece que a manifestação semiósica da existência arrasta consigo a idéia de que o que se manifesta com sentido deve ser justificável publicamente: o que nos traz a um outro aspecto da vindicação do existente nessas teorias, ou seja, o que quer que seja ou que haja deve passar pelo crivo do que é convencionalmente aceito, daquilo que está subjacente a regras socialmente estipuladas, e não como algo puramente dado aos sentidos ou, pior ainda, puramente subjetivo.



2. Nessa passagem em que Wittgenstein fala a Russell e a seus alunos sobre leões (aqueles que podem falar), cães (aqueles que esperam seus donos) e abacaxis (apenas os que são agradáveis), se entrevê uma espécie de “horizonte antropológico” das teorias da significação: com isto, se quer dizer que a suposta “verdade” que fazemos inerir a nossos juízos sobre matérias de fato (ou mesmo àqueles de gosto, como os que exprimem nossa experiência sensível) não é informada por nenhum aspecto intrínseco aos juízos ou ao mundo, mas sim aos “modos de vida” (os alemães chamam a isto uma weltanschaung) no qual nos inscrevemos praticamente; em outro momento do filme que já vimos, Wittgenstein esclarece que a relação entre os diferentes modos de falarmos da realidade (os diferentes “jogos de linguagem”) não é assunto que possa ser regulado teoricamente, a priori, mas no contexto prático de nossas conversações ordinárias.

3. Procuremos nos deslocar do contexto das disputas sobre a ontologia da significação, na lógica e na filosofia da linguagem, e chegarmos a uma maior proximidade com as questões mais clássicas das humanidades: fazendo assim, veremos que essa vindicação de um horizonte antropológico de que falávamos há pouco teve um fortíssimo acento precisamente nas ciências humanas e sociais do século passado.

4. Melhor ainda seria dizer que, se houve algum lugar onde a idéia de que a realidade é um constructum simbólico (e relativamente independente dos critérios de fisicalidade para a existência) predominou com mais força, foi justamente nas ciências humanas da segunda metade do século XX: e, não por acaso, boa parte das correntes teóricas que predominaram nesse período neste campo, se deixaram informar por instrumentais de análise e problemas herdados das ciências da linguagem, em geral, e dos modernos ramos da lingüística, em particular.

5. Nesta perspectiva, uma abordagem semiótica não concebe a cultura apenas como o conjunto dos “bens” concretos que uma sociedade ou grupo humano reconhece com seu acervo (como parte da tradição), tomando-os como objetos, artefatos, instrumentos ou obras: para além destes, ela reconhece sobretudo uma ordem (ou ainda um sistema) de “valores” compartilhados na mesma lógica humana que gerou cada uma destas coisas e que finalmente lhes confere este tipo específico de estatuto, enquanto “bens culturais”. A semiótica seria então o ramo de uma “ciência da cultura”, na medida em que procura entender os processos culturais, na perspectiva de uma lógica da produção dos signos e da atribuição de seus valores específicos (como veremos mais adiante, sua significação).

6. Nas definições mais recorrentes do que sejam Semiótica ou Semiologia em dicionários, igualmente encontraremos essa interessante correlação do estudo dos signos e de sua ação própria com os fundamentos de nossa experiência cultural: assumindo que os signos pelos quais expressamos estados de coisas necessitem ser compreendidos, de modo a serem partilhados em sua compreensão e na comunicação que podem instaurar, a vinculação do estudo sobre seu funcionamento com o dos processos nos quais se constitui uma experiência cultural quase não precisa ser reivindicado. Vejamos algumas destas definições:

Semiologia - “Estudo do desenvolvimento e do papel dos signos culturais na vida dos grupos humanos; teoria geral dos signos (nesta acepção, usa-se alternativamente ‘semiótica’); parte da medicina que se ocupa dos sinais e sintomas das doenças.”

Semiótica – “Ciência dos modos de produção, funcionamento e recepção de diferentes sistemas de signos de comunicação entre indivíduos e coletividades; semiologia/esta ciência, aplicada ao domínio particular da comunicação/ na lógica matemática, teoria dos símbolos.”

In: Enciclopédia e Dicionário Ilustrado Koogan/Houaiss. Rio: Delta (1988): pp. 1472.

Semiologia – “Ciência geral dos signos, segundo Ferdinand de Saussure (...), que estuda todos os fenômenos culturais, como se fossem sistemas de signos, i.e., sistemas de significação. Em oposição à Lingüística, que se restringe ao estudo dos signos lingüísticos, ou seja, da linguagem, a semiologia tem por objeto qualquer sistema de signos (imagens, gestos, vestuário, ritos, etc.); semiótica; estudo e descrição dos sinais e sintomas de uma doença; semiótica (nesta acepção, sintomatologia).”

Semiótica – “do grego shmeiotikh (‘Semeiotiké’, tekhne ou arte dos sinais). Denominação utilizada principalmente pelos autores norte-americanos, para a ciência geral dos signos; semiologia; semasiologia: arte de comandar manobras militares por meio de sinais, e não da voz.”

In: Novo Aurélio Século XXI. Rio: Nova Fronteira (1999): pp 1834.

Semiologia – “Para Ferdinand de Saussure, ciência geral que tem por objeto todos os sistemas de signos (incluindo os ritos e costumes) e todos os sistemas de comunicação vigentes na sociedade, sendo a lingüística científica seu ramo mais proeminente; para Luis Prieto, estudo de todos os sistemas de representação que têm a comunicação como função, privilegiando o funcionamento dos sistemas de signos não-linguísticos (numeração de ruas, quartos de hotel, códigos navais, etc.); para Roland Barthes, estudo das significações que podem ser atribuídas aos fatos da vida social concebidos como sistemas de significação: imagens, sons, gestos, sons melódicos, elementos rituais, protocolos, sistemas de parentesco, mitos, etc.”

Semiótica – “Para Charles S. Peirce, teoria geral das representações, que leva em conta os signos sob todas as formas e manifestações que assumem (lingüísticas ou não), enfatizando especialmente a propriedade de convertibilidade recíproca entre os sistemas significantes que integram”

In: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio: Objetiva (2005): pp. 2543.

7. O que se pode destacar destas passagens de definições de semiótica? Algumas noções são recorrentes em todas estas definições:

a. “signos” e “significação”;

b. “sistemas de signos” e “sistemas de significação”;

c. “signos culturais” e “fenômenos culturais”;

Por outro lado, o caráter de oposição ou de somatório que define certos aspectos do objeto de estudos dos saberes semióticos:

a. “sinais”/“signos”/“significação”

b. “linguagem”, “gestos”, “imagens”, “vestuário” e “ritos”

Finalmente, certos outros termos, sem serem recorrentes, chamam-nos a atenção pelo modo como se articulam, mais ou menos subentendidos nas duas ordens de definições:

a. a relação entre “sistemas de signos” e “modos de produção” culturais;

b. o caráter “científico” (de “estudos”) ou “técnico” (“artístico”) da competência semiótica;

8. Exploremos, então, cada um destes pontos em separado, começando pelo ultimo grupo grupo de noções: nos dois sub-itens que a constituem, encontramos, em primeiro lugar, a definção da semiótica enquanto técnica ou como ciência, associada à compreensão e à operação com signos e, em segundo lugar, a implicação de que a competência neste campo tem um fundamento ligado aos modos de inserção em contextos culturais. Se voltarmos a alguns dos itens da leitura nesta unidade, veremos o quanto eles nos auxiliam a confirmar estes modos ususias de definir a pertinência dos sabers semióticos, neste seu especial aspecto.

9. Assim sendo, em várias de suas definições, seja como “semiótica” ou “semiologia” (podemos deixar momentaneamente à parte as filigranas de terminologia do campo científico), encontramos recorrentemente a menção a noções que definem o objeto deste tipo de saber, de um lado (sejam os “signos”, a “significação”, ou ainda os “sistemas” que os implicam como objetos de estudo); no outro ponto do espectro, temos a noção de que a “cultura” é o lugar ou instância privilegiada na qual a funcionalidade dos fenômenos associados aos usos dos signos (sua expressão e compreensão, em contextos sociais e humanos) se efetiva.

10. Melhor seria dizer que é a noção mesma de um “sistema de signos” que se lança adiante, numa reflexão mais afeita à idéia de que a cultura seja definida como um fenômeno um pouco menos elusivo do que aquele que circula em boa parte das humanidades: assim sendo, as teorias semióticas parecem oferecer a uma ciência da cultura os elementos para pensar seus processos e fenômenos, a partir de um certo grau de sua manifestação mais concreta. Não é por outra razão, portanto, que Umberto Eco finaliza a introdução de seu Trattato, a partir da definição do umbral superior do exame de todo e qualquer fenômeno de significação e/ou comunicação, caracterizando a cultura em sua dimensão comunicacional.

· Eco, Umberto. “Introdução”: pp. 7,8,9.

11. De um ponto de vista mais histórico e menos estrutural, Iuri Lotman explora um outro aspecto da assimilação dos estudos humanísticos, a partir de um flair semiótico: ao considerar a “dupla função” dos objetos culturais (o prático e o simbólico), destaca-se, sob este ultimo aspecto, a conexão entre os fenômenos culturais e sua dimensão informacional (termo que, neste contexto, pode ser tomado como correlato da comunicação, em Eco). Como dissemos, entretanto, para Lotman esta é apenas uma questão de pressuposto, nas relações entre semiótica e cultura, pois o ponto essencial para ele diz respeito a uma tipologia das frmas culturais, que reativa aqui uma certa reificação das obras do espírito mais tradicionalmente associadas ao conceito mesmo de cultura (a arte e a literatura, por exemplo).

· Lotman, Iuri. “Sobre o problema da tipologia da cultura”: p. 32,33.

12. Imaginando que estas recorrências de definições e de termos tenham algum significado teórico (isto é, nos auxiliem a pensar as relações entre o que é assunto de uma teoria dos signos e o objeto de uma teoria da cultura), comecemos pelo final destas alegações sobre a localização cultural mesma dos fatos semiósicos: nosso ponto de partida é a idéia, expressa por algumas definições de dicionários, de que a “semiologia estuda os fenômenos culturais” ou ainda, “...o desenvolvimento e o papel dos signos culturais na vida dos grupos humanos”.

13. Nestas afirmações (e consideremos a sua repercussão em algumas definições mais “cultas” desta relação entre signos e cultura, em Eco e Lotman), a relação entre os fatos culturais e a ordem das significações está decerto postulada (o que quer que nos concirna teoricamente acerca dos signos é, assim sendo, da ordem da cultura), mas não argumentada suficientemente: assim, sabemos que os signos dependem de uma convenção para funcionar e que esta arbitrariedade é genericamente gestada na experiência culturalmente partilhada dos grupos humanos. O que nos resta especificar, em mais detalhes, é precisamente a natureza semiosicamente estruturada dos processos e fenômeno culturais (assim como a natureza culturalizada daquilo que deve ser assumido enquanto fenômeno de comunicação, para ser enfim abordado numa perspectiva semiótica): estes assuntos serão o tópico de nossas próximas explorações, mais adiante.

Leituras Recomendadas:

Eco, Umberto. “Introdução: rumo a uma lógica da cultura”. In: Tratado Geral de Semiótica;

Lotman, Iuri. “Sobre o problema da tipologia da cultura”. In: Semiótica Russa.