Sunday, October 04, 2009

2a Unidade: O estudo dos signos e a "lógica da cultura"

Semiótica - COM 102 – Aula no 2

O estudo dos signos e a “lógica da cultura”

2.1. O “fundo antrooplógico” das teorias do signo e o conceito semiótico de cultura

1. Expondo o fundamento ontológico de toda pergunta pela significação, descobrimos que, ao se interrogarem pela natureza mesma do que há, certas teorias avançam o primado dos “sistemas simbólicos” e dos “esquemas conceituais”, pedindo que falemos do ser a partir de sua manifestação enquanto signo. Ora, nestas mesmas teorias se estabelece que a manifestação semiósica da existência arrasta consigo a idéia de que o que se manifesta com sentido deve ser justificável publicamente: o que nos traz a um outro aspecto da vindicação do existente nessas teorias, ou seja, o que quer que seja ou que haja deve passar pelo crivo do que é convencionalmente aceito, daquilo que está subjacente a regras socialmente estipuladas, e não como algo puramente dado aos sentidos ou, pior ainda, puramente subjetivo.



2. Nessa passagem em que Wittgenstein fala a Russell e a seus alunos sobre leões (aqueles que podem falar), cães (aqueles que esperam seus donos) e abacaxis (apenas os que são agradáveis), se entrevê uma espécie de “horizonte antropológico” das teorias da significação: com isto, se quer dizer que a suposta “verdade” que fazemos inerir a nossos juízos sobre matérias de fato (ou mesmo àqueles de gosto, como os que exprimem nossa experiência sensível) não é informada por nenhum aspecto intrínseco aos juízos ou ao mundo, mas sim aos “modos de vida” (os alemães chamam a isto uma weltanschaung) no qual nos inscrevemos praticamente; em outro momento do filme que já vimos, Wittgenstein esclarece que a relação entre os diferentes modos de falarmos da realidade (os diferentes “jogos de linguagem”) não é assunto que possa ser regulado teoricamente, a priori, mas no contexto prático de nossas conversações ordinárias.

3. Procuremos nos deslocar do contexto das disputas sobre a ontologia da significação, na lógica e na filosofia da linguagem, e chegarmos a uma maior proximidade com as questões mais clássicas das humanidades: fazendo assim, veremos que essa vindicação de um horizonte antropológico de que falávamos há pouco teve um fortíssimo acento precisamente nas ciências humanas e sociais do século passado.

4. Melhor ainda seria dizer que, se houve algum lugar onde a idéia de que a realidade é um constructum simbólico (e relativamente independente dos critérios de fisicalidade para a existência) predominou com mais força, foi justamente nas ciências humanas da segunda metade do século XX: e, não por acaso, boa parte das correntes teóricas que predominaram nesse período neste campo, se deixaram informar por instrumentais de análise e problemas herdados das ciências da linguagem, em geral, e dos modernos ramos da lingüística, em particular.

5. Nesta perspectiva, uma abordagem semiótica não concebe a cultura apenas como o conjunto dos “bens” concretos que uma sociedade ou grupo humano reconhece com seu acervo (como parte da tradição), tomando-os como objetos, artefatos, instrumentos ou obras: para além destes, ela reconhece sobretudo uma ordem (ou ainda um sistema) de “valores” compartilhados na mesma lógica humana que gerou cada uma destas coisas e que finalmente lhes confere este tipo específico de estatuto, enquanto “bens culturais”. A semiótica seria então o ramo de uma “ciência da cultura”, na medida em que procura entender os processos culturais, na perspectiva de uma lógica da produção dos signos e da atribuição de seus valores específicos (como veremos mais adiante, sua significação).

6. Nas definições mais recorrentes do que sejam Semiótica ou Semiologia em dicionários, igualmente encontraremos essa interessante correlação do estudo dos signos e de sua ação própria com os fundamentos de nossa experiência cultural: assumindo que os signos pelos quais expressamos estados de coisas necessitem ser compreendidos, de modo a serem partilhados em sua compreensão e na comunicação que podem instaurar, a vinculação do estudo sobre seu funcionamento com o dos processos nos quais se constitui uma experiência cultural quase não precisa ser reivindicado. Vejamos algumas destas definições:

Semiologia - “Estudo do desenvolvimento e do papel dos signos culturais na vida dos grupos humanos; teoria geral dos signos (nesta acepção, usa-se alternativamente ‘semiótica’); parte da medicina que se ocupa dos sinais e sintomas das doenças.”

Semiótica – “Ciência dos modos de produção, funcionamento e recepção de diferentes sistemas de signos de comunicação entre indivíduos e coletividades; semiologia/esta ciência, aplicada ao domínio particular da comunicação/ na lógica matemática, teoria dos símbolos.”

In: Enciclopédia e Dicionário Ilustrado Koogan/Houaiss. Rio: Delta (1988): pp. 1472.

Semiologia – “Ciência geral dos signos, segundo Ferdinand de Saussure (...), que estuda todos os fenômenos culturais, como se fossem sistemas de signos, i.e., sistemas de significação. Em oposição à Lingüística, que se restringe ao estudo dos signos lingüísticos, ou seja, da linguagem, a semiologia tem por objeto qualquer sistema de signos (imagens, gestos, vestuário, ritos, etc.); semiótica; estudo e descrição dos sinais e sintomas de uma doença; semiótica (nesta acepção, sintomatologia).”

Semiótica – “do grego shmeiotikh (‘Semeiotiké’, tekhne ou arte dos sinais). Denominação utilizada principalmente pelos autores norte-americanos, para a ciência geral dos signos; semiologia; semasiologia: arte de comandar manobras militares por meio de sinais, e não da voz.”

In: Novo Aurélio Século XXI. Rio: Nova Fronteira (1999): pp 1834.

Semiologia – “Para Ferdinand de Saussure, ciência geral que tem por objeto todos os sistemas de signos (incluindo os ritos e costumes) e todos os sistemas de comunicação vigentes na sociedade, sendo a lingüística científica seu ramo mais proeminente; para Luis Prieto, estudo de todos os sistemas de representação que têm a comunicação como função, privilegiando o funcionamento dos sistemas de signos não-linguísticos (numeração de ruas, quartos de hotel, códigos navais, etc.); para Roland Barthes, estudo das significações que podem ser atribuídas aos fatos da vida social concebidos como sistemas de significação: imagens, sons, gestos, sons melódicos, elementos rituais, protocolos, sistemas de parentesco, mitos, etc.”

Semiótica – “Para Charles S. Peirce, teoria geral das representações, que leva em conta os signos sob todas as formas e manifestações que assumem (lingüísticas ou não), enfatizando especialmente a propriedade de convertibilidade recíproca entre os sistemas significantes que integram”

In: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio: Objetiva (2005): pp. 2543.

7. O que se pode destacar destas passagens de definições de semiótica? Algumas noções são recorrentes em todas estas definições:

a. “signos” e “significação”;

b. “sistemas de signos” e “sistemas de significação”;

c. “signos culturais” e “fenômenos culturais”;

Por outro lado, o caráter de oposição ou de somatório que define certos aspectos do objeto de estudos dos saberes semióticos:

a. “sinais”/“signos”/“significação”

b. “linguagem”, “gestos”, “imagens”, “vestuário” e “ritos”

Finalmente, certos outros termos, sem serem recorrentes, chamam-nos a atenção pelo modo como se articulam, mais ou menos subentendidos nas duas ordens de definições:

a. a relação entre “sistemas de signos” e “modos de produção” culturais;

b. o caráter “científico” (de “estudos”) ou “técnico” (“artístico”) da competência semiótica;

8. Exploremos, então, cada um destes pontos em separado, começando pelo ultimo grupo grupo de noções: nos dois sub-itens que a constituem, encontramos, em primeiro lugar, a definção da semiótica enquanto técnica ou como ciência, associada à compreensão e à operação com signos e, em segundo lugar, a implicação de que a competência neste campo tem um fundamento ligado aos modos de inserção em contextos culturais. Se voltarmos a alguns dos itens da leitura nesta unidade, veremos o quanto eles nos auxiliam a confirmar estes modos ususias de definir a pertinência dos sabers semióticos, neste seu especial aspecto.

9. Assim sendo, em várias de suas definições, seja como “semiótica” ou “semiologia” (podemos deixar momentaneamente à parte as filigranas de terminologia do campo científico), encontramos recorrentemente a menção a noções que definem o objeto deste tipo de saber, de um lado (sejam os “signos”, a “significação”, ou ainda os “sistemas” que os implicam como objetos de estudo); no outro ponto do espectro, temos a noção de que a “cultura” é o lugar ou instância privilegiada na qual a funcionalidade dos fenômenos associados aos usos dos signos (sua expressão e compreensão, em contextos sociais e humanos) se efetiva.

10. Melhor seria dizer que é a noção mesma de um “sistema de signos” que se lança adiante, numa reflexão mais afeita à idéia de que a cultura seja definida como um fenômeno um pouco menos elusivo do que aquele que circula em boa parte das humanidades: assim sendo, as teorias semióticas parecem oferecer a uma ciência da cultura os elementos para pensar seus processos e fenômenos, a partir de um certo grau de sua manifestação mais concreta. Não é por outra razão, portanto, que Umberto Eco finaliza a introdução de seu Trattato, a partir da definição do umbral superior do exame de todo e qualquer fenômeno de significação e/ou comunicação, caracterizando a cultura em sua dimensão comunicacional.

· Eco, Umberto. “Introdução”: pp. 7,8,9.

11. De um ponto de vista mais histórico e menos estrutural, Iuri Lotman explora um outro aspecto da assimilação dos estudos humanísticos, a partir de um flair semiótico: ao considerar a “dupla função” dos objetos culturais (o prático e o simbólico), destaca-se, sob este ultimo aspecto, a conexão entre os fenômenos culturais e sua dimensão informacional (termo que, neste contexto, pode ser tomado como correlato da comunicação, em Eco). Como dissemos, entretanto, para Lotman esta é apenas uma questão de pressuposto, nas relações entre semiótica e cultura, pois o ponto essencial para ele diz respeito a uma tipologia das frmas culturais, que reativa aqui uma certa reificação das obras do espírito mais tradicionalmente associadas ao conceito mesmo de cultura (a arte e a literatura, por exemplo).

· Lotman, Iuri. “Sobre o problema da tipologia da cultura”: p. 32,33.

12. Imaginando que estas recorrências de definições e de termos tenham algum significado teórico (isto é, nos auxiliem a pensar as relações entre o que é assunto de uma teoria dos signos e o objeto de uma teoria da cultura), comecemos pelo final destas alegações sobre a localização cultural mesma dos fatos semiósicos: nosso ponto de partida é a idéia, expressa por algumas definições de dicionários, de que a “semiologia estuda os fenômenos culturais” ou ainda, “...o desenvolvimento e o papel dos signos culturais na vida dos grupos humanos”.

13. Nestas afirmações (e consideremos a sua repercussão em algumas definições mais “cultas” desta relação entre signos e cultura, em Eco e Lotman), a relação entre os fatos culturais e a ordem das significações está decerto postulada (o que quer que nos concirna teoricamente acerca dos signos é, assim sendo, da ordem da cultura), mas não argumentada suficientemente: assim, sabemos que os signos dependem de uma convenção para funcionar e que esta arbitrariedade é genericamente gestada na experiência culturalmente partilhada dos grupos humanos. O que nos resta especificar, em mais detalhes, é precisamente a natureza semiosicamente estruturada dos processos e fenômeno culturais (assim como a natureza culturalizada daquilo que deve ser assumido enquanto fenômeno de comunicação, para ser enfim abordado numa perspectiva semiótica): estes assuntos serão o tópico de nossas próximas explorações, mais adiante.

Leituras Recomendadas:

Eco, Umberto. “Introdução: rumo a uma lógica da cultura”. In: Tratado Geral de Semiótica;

Lotman, Iuri. “Sobre o problema da tipologia da cultura”. In: Semiótica Russa.

1 comment:

secosemolhados said...

Busquei no google algo claro e conceitual sobre signos, e achei o que precisava. Parabéns,voltarei mais vezes.