Wednesday, October 28, 2009

A Estrutura Elementar da Compreensão: inferência e dependência

Queridos,

Mais abaixo, seguem as notas do último tópico de aulas: entramos na discussão sobre a estrutura elementar da compreensão e nos rudimentos da inferência enquanto modalidade da significação.

Divirtam-se,

Benjamim

Semiótica - COM 102

Aula no 3 – A Estrutura Elementar da Compreensão

3.1. O “princípio da dependência” e os modos inferenciais da compreensão

1. Falamos até aqui de um certo “fundo especulativo”, do qual se originam certos problemas que caracterizam as teorias semióticas em geral: especialmente, nos devotamos às questões sobre o caráter daquilo que há, e arrematamos a exposição com a indicação de que o olhar da semiótica sobre questões metafísicas implica a admissão de que, em última instância, são os processos de significação constituem o mundo ao qual nos reportamos, quando falamos dele, o pensamos ou até mesmo o percebemos.

2. Nesse sentido, não é que uma teoria semiótica nasça necessariamente de uma negação dos problemas metafísicos, mas certamente de uma outra posição, no que respeita a concepção sobre o que significa dizer que alguma coisa : de um ponto de vista semiótico, a existência é sempre assunto relativo aos regimes e modos característicos de nossa compreensão; pois é precisamente sobre a natureza desses regimes que precisamos falar, a partir de agora.

3. Tomemos em causa agora a noção de que a existência independe de nossos modos de compreendê-la: o postulado de que as coisas que conhecemos manifestam-se com uma indiferença ontológica no que respeita os modos como nos tornamos cientes delas é a de que a realidade se dá como pura singularidade, isto é: cada coisa que há persiste no mundo com absoluta independência em relação a qualquer outra coisa ou ainda, em relação aos modos como somos capazes de pensá-las ou discriminá-las. No jargão de uma certa escola filosófica, fala-se na atomicidade de tudo aquilo que há, de tudo o que é o caso, de modo que uma ocorrência no mundo se explica por sua própria individualidade, e não por qualquer recurso de comparação com outras coisas do mundo que com elas se assemelhem ou se oponham.

4. Do ponto de vista de uma teoria semiótica, uma tal concepção sobre o que existe é, por definição, insustentável, a partir do momento em que examinarmos, na prática, como é que as coisas que existem se tornam pertinentes para uma inteligência raciocindadora: assim sendo, um objeto manifesto no mundo não vale como o que é, en soi-même, como decorrência de sua pura individualidade ou como dado singular e independente de certas condições estruturais de sua apreensão; ao contrário, é o que é pelos modos e condições nas quais esta ocorrência pode ser correlacionada, comparada, comensurada com respeito a alguma outra ou a uma série ou classe delas, ou ainda, pelo fato de que esta realidade pode ser reportada em seu aspecto de generalidade, como conceito ou idéia.

5. A passagem daquilo que há para o ser é sempre decorrência da correlação deste aliquid (sobre o qual falamos) a um outro algo a que nos reportamos para auxiliar na determinação de sua própria realidade: aquilo que há estará sempre na dependência de um outro algo (um aliquo), seja de que natureza ele for (seja da ordem de outra coisa existente, seja da ordem de uma idéia ou conceito, ou seja, de um objeto abstrato).

6. Se, por outro lado, nos recordarmos daquilo que afirma Eco sobre o caráter sistemático (portanto regular e transmissível) dos fenômenos culturais, aquilo que faz de nossa relação com os objetos externos algo que os torna reais (ou ainda, significativos), tudo isto decorre do modo como nosso contato com o mundo assume o aspecto de uma regra de uso, cujo fundamento é o fato de que as coisas que sabemos não se manifestam como singulares, mas como ocorrências de um tipo geral. O relação caracteristicamente instrumental que mantemos com a natureza somente se torna algo de interessante ao olhar das teorias da significação quando incorporado ao sentido de uma norma cultural que seu uso continuado acaba por sedimentar: na gênese desta normalidade, está o princípio da comparabilidade que demarca o modo como somos capazes de conhecer e atribuir valor de existência a um dado do mundo.

7. No caso da compreensão sobre um fato exterior à nossa consciência, vemos que qualquer coisa que nos ocorra à experiência como significativa, assim o é por estar coligada com algo mais (seja esse algo um outro dado singular ou então uma classe de objetos) ou ainda com algum aspecto pelo qual sua presença é requisitada (um traço de sua morfologia, um dado de sua utilidade, entre tantos outros): mais importante, essa coligação funciona num regime de compreensão no qual a exterioridade manifesta do objeto não é necessariamente determinante daquilo que nos dá esse mesmo objeto a conhecer.

8. Consideremos a economia interna desse regime de nossa compreensão, e chamemo-lo pelo princípio mesmo de seu funcionamento, como uma “regra da dependência”, assim enunciada: segundo este princípio, não haverá nada que esteja ao alcance de nossa compreensão (seja qual for o seu regime em que ela o requisite), sem que associemos estes objetos de nossa experiência a outras coisas, classes ou aspectos de coisas com os quais ele pode manter algum tipo de relação; e mesmo se pensarmos naquilo que nos ocorre por um primeiro instante como sendo significativo (como uma primeira impressão acerca de algo, ou como nosso primeiro contato com algo de inédito), não devemos confundir a aparente novidade deste dado, este aspecto supostamente inaugural do objeto da compreensão, com o caráter inaugural do regime no qual compreendemos essas mesmas coisas.

9. Quando o que nos ocorre à experiência é um fato absolutamente novo, não devemos supor que este último se dê deste modo para uma consciência, pois ela será sempre capaz de coordená-lo com os aspectos desta ocorrência que exibem alguma similaridade com fatos já conhecidos (o que significa que uma regra de comparação entra em jogo, na nossa cogitação sobre aquilo que nos ocorre pela primeira vez): um dos aspectos da estrutura na qual conhecemos realidades é o de que nada do que se depara conosco deixa de ter concernimento ou relação com algo que já sabemos (nada nos é absolutamente novo, nesse sentido, mas sempre inaugural na relação com aquilo que já sabemos, e mediante o qual ponderamos e avaliamos, enquanto novidade). Devemos estabelecer, portanto, uma demarcação entre a natureza de tudo o que compreendemos e, por outro lado, o como compreendemos: evidentemente, de uma perspectiva semiótica, o último item nos interessa mais do que o primeiro.

10. De um lado, já mencionamos que o “princípio da dependência” nos impede de tomar a factualidade de uma ocorrência do mundo como um fenômeno puramente atômico em seu valor de referência para uma consciência: do ponto de vista da especulação sobre o assunto, já estamos suficientemente cientes de que este algo que tenho diante de mim é, por definição, relativo a alguma outra coisa, no modo como ele se torna existente, para mim. Como já vimos em aulas anteriores, o que torna um objeto algo distinto à consciência para a qual ele se apresenta tem menos a ver com o caráter de pura apresentação de sua realidade, e mais com a aspectualidade mediante a qual a consciência é capaz de se reportar a este objeto. Os modos de manifestação deste mecanismo são variados, mas o dado mais importante a se considerar na questão é que, ao nos referirmos à dependência de um fato com respeito a outros, estamos falando de uma propriedade da consciência e não necessariamente dos fatos isolados entre si.

11. Detenhamo-nos um pouco mais, entretanto, sobre a relação mesma que é constitutiva do modo como conhecemos fatos: assim sendo, um fato depreende sua individualidade não de sua singular ocorrência, mas em razão de poder estar coligado com outro fato ou aspectos de fatos (em termos, por estar configurado no contexto mais completo de um “estado de coisas”). A modalidade de compreensão que se exprime tendo por objeto não os fatos em si, mas as relações entre eles pode ser chamada de uma modalidade inferencial da compreensão: as inferências se definem precisamente como um modo de conhecer coisas ou estados de coisas que se definem por um tipo específico de relação entre termos (ou entre proposições que falam destes termos (seja na condição de sujeitos ou de predicados).

12. Em boa medida (e foi assim que a lógica aristotélica nos legou o problema da dedução formal), ao falarmos de uma modalidade inferencial de implicação, estamos nos reportando a um modo de descrever nosso pensamento, a partir da definição de sua estrutura interna, ou de sua forma: quando falamos de fatos sobre aos quais nos reportamos, o modo de raciocinar que nos é próprio põe em movimento um traço da remissão às coisas do mundo (real ou possível) que é, por sua vez, estruturado através de uma implicatura (manifesta, como veremos, na forma do “se x, logo y”).

13. Mais do que isto, estamos falando de uma estrutura de nossa remissão ao mundo que se pauta por um critério de verdade, e que é da ordem de uma necessidade instaurada pelo próprio movimento de implicação, formalmente estruturante do pensamento: assim sendo, não há nada de absolutamente exterior na determinação de uma veridição, em termos lógico-inferenciais; é o mecanismo mesmo da implicação que parece instaurar a validade dos modos como relacionamos objetos, fatos, aspectos e estados de coisas. De todo modo, esta relação de implicação tem um valor universal, de tal modo que, ao estabelecer uma conclusão a partir de determinados fatos, é necessário que nosso modo de pensar esteja de acordo com o que é universalmente aceito como implicação entre fatos.

14. Alguns casos de pensamento inferencial:

• o raciocínio implicador das previsões do tempo (“as nuvens indicam chuva iminente”), que guardam similitude estrutural com os casos clássicos de juízos sobre matéria de fato, como “se fumaça, logo fogo” (a implicação, nestes casos, é de uma necessidade puramente causal, mecânica, e se desenvolve no eixo do tempo, do passado para o futuro e vice-versa);

• o raciocínio do investigador (seja ele um detetiva, um clínico ou mesmo um jornalista): neste caso, a verdade relativa a esta implicação não pré-existe (a não ser na condição de haver um fato passado ao qual se tenta recobrar, retrospectivamente) como condição do raciocínio, mas é, em boa medida, como que construída pela habilidade (ou pelos pressupostos) do intérprete em arranjar os elementos presentes à consciência, estabelecendo para eles conexões supostamente inauditas, mas que, ao fim, podem se revelar como verdadeiras ou, melhor, “válidas”;

Referências Bibliográficas:

Guinzburg, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. In: Mitos, Emblemas, Sinais.

Volli, Ugo. "Interpretação". In: Manual de Semiótica.

Próximas Leituras:

Eco, Umberto. “Signo e inferência”. In: Semiótica e Filosofia da Linguagem;

Peirce, Charles Sanders. “Algumas consequências de quarto incapacidades”. In: Semiótica.

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