Tuesday, October 20, 2009

A cultura como fato de comunicação

Queridos,

Seguem mais abaixo as notas referentes ao último item de exposição da segunda unidade. Como tive a confirmação de que não haverá aula na próxima segunda-feira, deixarei para disponibilizar as questões da avaliação referente a este ponto na próxima aula, no dia de amanhã.

Ad,

Benjamim

Semiótica - COM 102 – Aula no 2

O estudo dos signos e a “lógica da cultura”

2.2. A cultura como fato de comunicação e como sistema de significação

1. Vimos, no item anterior de nossas exposições, que o estudo dos signos é determinado por uma consideração prévia sobre a ordenação cultural dos fatos humanos, o que caracterizaria o assim chamado fundo antropológico que seria próprio a estas teorias. Mas a proposição desta cláusula de origem dos saberes semióticos ainda deixa num certo vazio aquilo a que se poderia chamar de “cultura”, enquanto fenômeno observado ou mesmo como matriz conceitual da caracterização da experiência tipicamente humana.

2. Em termos, precisamos nos interrogar não tanto sobre os modos nos quais a significação se assimila ao conceito de cultura, mas em que medida não apenas o estudo dos signos oferece uma maior clareza aos debates acerca daquilo que define a cultura enquanto marco de nossa condição ontological de gênero: enfim, qual é mesmo o conceito de cultura que nos permite assimilar ao estudo de seus fenômenos o valor característico de noções como a de “signo” e “significação”.

3. Uma boa maneira de formular estas questões implica em que nos voltemos para as definições de dicionário de “semiótica” e “semiologia” apresentadas anteriormente e nos interroguemos sobre a propriedade com a qual elas assimilam o estudo dos signos e dos sistemas de significação à ordem dos fenômenos culturais. Este é o ponto que devemos desenvolver, doravante, em nossa exposição. Ele implica, em primeiro lugar, que reconheçamos, de antemão, a validade de uma assimilação da significação à ordem da partilha cultural dos sentidos, mas pede que nos dediquemos, a partir daí, a uma pergunta sobre o coceito mesmo de cultura, uma vez dado este pressuposto.

4. Invertamos por um momento a questão original, para nos perguntarmos agora sobre o que caracteriza, afinal de contas, um fato cultural, como fenômeno pertinente a um estudo semiótico? Ou ainda: o que conferirá a um fato qualquer o status de um fenômeno a ser estudado, na perspectiva de uma teoria da cultura, e de que modo seu estudo como fenômeno sígnico pode torná-lo pertinente em sua dimensão de fato que se explica pelo princípio da partilha cultural de sua raison d’être? A leitura dos textos de Umberto Eco e de Julia Kristeva foi desenhada para nos elucidar precisamente acerca de aspectos específicos dessa questão geral: exploremos com algum vagar o que eles nos têm a dizer sobre este ponto.

5. Nas últimas partes da introdução de seu Trattato, Umberto Eco assinala três ordens de fatos humanos que podem ser estudados na perspectiva de uma ciência da cultura, na medida mesma em que são concebidos enquanto fenômenos sígnicos. São os seguintes: a. a produção e o uso de objetos que transformam a relação homem/natureza; b. as relações familiares como núcleo primário de relações sociais institucionalizadas; c. a troca de bens econômicos. Vejamos cada um desses casos:

· 2001, a Space Odissey, de Stanley Kubrick (1968)

6. Em primeiro lugar, a produção e o uso de objetos: segundo Umberto Eco, o uso puramente instrumental de objetos não caracteriza necessariamente uma ordem de fatos que seja estudável na perspectiva dos fenômenos culturais. No reino animal, encontramos inúmeros exemplos da instrumentação da natureza com fins variados (habitação, proteção, disfarce), já que o estabelecimento desta função não se constitui com base em um tipo de valor sistemático da ação instrumental (sua finalidade é a única razão de ser do ato, no reino animal).

7. Na ordem dos fatos culturais, um aspecto decisivo do uso de objetos enquanto instrumentos está enraizado no caráter sistemático da ação instrumental (o fato, portanto, de que ela se deriva de, ou até mesmo é capaz de engendrar, uma regra de uso dos objetos, com fins instrumentais, regra esta que pode ser legada às gerações seguintes, sob a forma de um aprendizado igualmente sistemático). A dimensão cultural do ato se instura na medida em que uma função seja concebida como a estrutura deste mesmo ato: a função pela qual o ato é a instância mais particular de uma regra cultural mais geral.

· Eco, Umberto. “Introdução…”: p. 18

8. Em segundo lugar, as transmissões de vínculo familiar: a troca de mulheres em sociedades supostamente primitivas não pode ser visada apenas na perspectiva de sua valorização, enquanto fato civilizatório (não se pode supor que, em sociedades nas quais as mulheres sejam tomadas como objetos de uso, estejamos em um quadro comparativamente inferior da evolução das sociedades). Numa perspectiva própria à antropologia estrutural de Levi-Strauss (e, mais remotamente, à noção de troca enquanto dádiva, em Mauss), a troca de mulheres é estudada em seu aspecto de transmissão sistematicamente ordenada das relações de parentesco em todas as sociedades, de modo indistinto.

9. Neste contexto das trocas familiars (por intermédio de uma instância estruturalmente invariante, como o casamento em diferentes sociedades), o que se estabelece é um conjunto de alianças regrado por princípios daquilo que pode e não pode ser trocado (o que é firmado a partir de um sistema de valores determinado), no contexto de regras culturais aparentemente específicas de cada sociedade (mas que podem ser explicadas pela recorrência de certos princípios estruturais comuns a todas elas).

10. A idéia de que este sistema subterrâneo de valores opera invariavelmente, de modo independente das circunstâncias de diferentes formações clturais (mas, ainda assim, como traço característico das concepções e práticas humanas) manifesta-se naquilo que é genericamente interditado, como parte do sistema de trocas familiares: a caracterização do incesto como limite é, neste contexto, menos uma questão de proibição de um tipo de vínculo parental específico e mais o estabelecimento das condições nas quais a troca do parentesco se constitui legalmente nas sociedades humanas, em geral (ela não é nem um fato biológico-individual, tampouco explicável pela história de comunidades em particular, mas uma construção humana e social, de caráter universal e estruturalmente invariante).

· Kristeva, Julia. “A semiótica”: p. 417,418.

11. Terceiro exemplo, a troca de bens econômicos: na medida em que falamos de “troca” de objetos, no contexto de uma prática cultural determinada (a da negociação econômica), o sentido comunicacional do fenômeno se revela, em primeira instância (nas sociedades humanas, intercambiam-se objetos, com propósitos variados). Mais importante, este processo de troca não se dá de maneira absolutamente gratuita, mas está fundado num tipo de valorização sistemática dos objetos, no contexto mesmo da troca de bens (o velho problema do “valor de troca”, como acrescentado ao “valor de uso” das coisas).

12. O estabelecimento de um sistema dos valores pelos quais os objetos (agora tornados “bens”) podem ser comunicados entre si se constitui em um assunto que pode concernir ao olhar semiótico (especialmente quando consideramos a intrusão de um instrumento como o da “moeda”, e que serve como intermediador mais abstrato desse sistema de valores).

Ilha das Flores, Jorge Furtado (1989)

13. Em todos estes casos, vislumbramos alguns aspectos daquilo que interessa a uma teoria semiótica, quando aborda o universo de seus fenômenos de interesse, enquanto fatos ligados a um hipotético “sistema da cultura” mais geral: o uso de objetos, a troca familiar e as relações econômicas não constituem-se apenas como fatos explicáveis na ordem específica dos campos de conhecimento aos quais associamos estes fenômenos (a saber, a biologia, as teorias sociais ou a economia), mas deixam entrever uma dimensão de construção simbólica da realidade (na forma de um sistema socialmente partilhado de referências e de valores de sentido), sob os quais a particularidade destes fenômenos se sustenta como parte de um acervo das sociedades humanas, em geral, na sua relação com o mundo objetivo.

14. Com isso, Eco fica justificado em afirmar que os mecanismos fundamentais que caracterizam uma cultura, concebida em seu sentido antropológico (isto é, como concernente à caracterização do espírito humano em seus fundamentos e práticas), somente se revelam mais integralmente a uma análise, na medida em que são tomados enquanto fenômenos comunicacionais, e por sua vez sustentados em sistemas de significação: em cada uma dessas manifestações listadas por Eco (o caso de Kristeva não é dramaticamente distinto, e até mesmo estende para além a validade das teses do primeiro, já que inclui ao universo do alcance da steorias semióticas os fenômenos da expressão artística), fica comprovado que, tomadas na sua condição de fatos humanos, esses fenômenos podem ser estudados numa perspectiva que os valoriza a partir daquelas categorias que exploraremos em seguida, durante nosso percurso (em última análise, como partes de uma construção simbólica).

15. Em todos estes casos, temos um fenômeno cultural em vista, na medida em que a realidade de cada uma destas ordens de fatos se sustenta sobre uma pactuação sistemática dos valores que lhe seriam supostamente intrínsecos: assim sendo, o uso instrumental de objetos, por exemplo, não se perde na sua absoluta individualidade concreta, mas pode ser sempre repetido, em circunstâncias similares, como parte de uma função inerente à sua execução, e que é aquela pela qual normalmente aprendemos sua mecânica, quando ela nos é transmitida; e a transmissão mesma dessas práticas pelo aprendizado é um aspecto que as diferencia daquilo que se passa em contextos aparentemente similares, como em casos no mundo natural, já que o objeto deste ensinamento não é da ordem da pura replicação mecânica das práticas, mas, como vimos, da assimilação de seus aspectos estruturais.

16. Do mesmo modo, a troca parental não se determina na particularidade de uma biografia ou da história de uma sociedade, mas se enraiza em regras culturais que funcionam como uma “estrutura profunda” da gênese das relações sociais (através da transmissão das linhagens de prentesco, aprendemos um pouco sobre como as relações sociais se formam, em seu aspecto de regras e interdições culturais). O mesmo se dá, finalmente, com a troca de bens, vemos que o valor com o qual os objetos são intercambiados, num contexto econômico, não se explica na particularidade de seu valor de uso, mas na generalidade que o valor de troca lhe associa (e, com a visão do marxismo, vamos mais longe, ao descobrirmos as artimanhas pelas quais o sistema capitalista é capaz de reificar esta dimensão da troca, alienando-a da relação mais direta da mercadoria com sua finalidade de uso).

Leituras recomendadas:

Eco, Umberto. “Introdução: rumo a uma lógica da cultura”. In: Tratado Geral de Semiótica

Kristeva, Julia. “Semiótica”. In: História da Linguagem;

Próximas Leituras:

Guinzburg, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. In: Mitos, Emblemas, Sinais.

Volli, Ugo. "Interpretação". In: Manual de Semiótica.

No comments: