Tuesday, November 24, 2009

Signos e Inferencia em Peirce

Semiótica - COM 102

4. Conceitos centrais das teorias semióticas: o signo

4.1. Signos e Inferência: pensamento, intuição e significação em Peirce

  1. Na exploração que fizemos anteriormente da estrutura lógica própria ao raciocínio detetivesco, já identificamos, como nosso propósito inicial, as relações entre este modo de conhecer e o modelo conjectural (como o concebe Guinzburg), característico de um certo paradigma das ciências da observação (como é o caso da clínica médica), agora refluídas sobre certos ramos das humanidades (o que constituiria a matriz da penetração dos saberes semióticos nas ciências humanas e sociais, no último século).
  1. Isto devidamente feito, é necessário agora que passemos a uma etapa subseqüente de nossa argumentação, que já havíamos prenunciado, na etapa anterior da exposição: trata-se de extrair do exemplo trazido pela racionalidade detetivesca uma iluminação sobre o conceito mesmo de signo; neste caso, nos interessa explorar as vertentes lógicas das teorias da significação e as relações ali propostas entre a estrutura lógica de nossas cogitações, testes de verdade e certezas e os seus modos de apresentação e expressão, através de formas significantes (ou mais simplesmente, as relações entre os processos cognitivos e a estrutura da significação). Neste caso, a perspectiva lógica dos fenômenos de significação, instaurada pelos escritos de Peirce, é o caso mais exemplar que desejamos tomar como ponto de partida.
  1. Tomemos, mais uma vez, em causa o exemplo do raciocínio de Dupin sobre as idas e vindas das cogitações internas do narrador de “Os Crimes da Rua Morgue”: já vimos que o detetive põe em jogo um gênero de raciocínio ao qual se designa usualmente como sendo o da “hipótese”. Sem considerarmos, por ora, a relação este gênero de conjecturas e a lógica da ciência, nos interessa em especial a estrutura semiósica na qual este tipo de cogitação parece se basear: na hipótese, nos interessa aquilo que caracteriza um gênero muito peculiar de atenção àquilo que é o caso (àquilo que, uma vez presente aos sentidos, manifesta-se à atenção de quem pensa como reunindo um conjunto de qualidades salientes, às quais poderíamos chamar de aspectos).
  1. No caso de Dupin, se pudermos recapitular cada estágio de sua cogitação sobre os movimentos do espírito do narrador, veremos que cada evento que ele traz à luz de sua explicação funcionou como um signo daquilo que ele pretendia estabelecer como sendo o estado interior de seu parceiro. É relativamente fácil observarmos como isto pode ter-de dado, passo a passo.

· Harrowitz, “O arcabouço do modelo de detetive...”: pp. 209,210.

  1. Em geral, a questão da hipótese é tratada pela comunidade dos intérpretes de Peirce, em comparação com as outras modalidades do raciocínio, a saber a indução e a dedução (ou, em termos, à demosntração à conclusão), o que normalmente nos conduz a um formalismo vazio e a uma considerável distancia do alcance da hipótese, na sua relação com os processos de significação e de compreensão: numa certa medida, a lógica da hipótese diz respeito a um fenômeno anterior a toda conjectura e reflexão acerca dos dados dos sentidos, ou seja, ela parece lançar uma luz sobre o modo racionalmente constituído de nossa percepção ordinária (ou seja, o caráter de juízo que é inerente àquilo que mais comumente chamamos de fatos).
  1. Em que sentido isto é particularmente dramático, de um ponto de vista teórico? Ora, se recobrarmos alguns momento iniciais deste nosso percurso pelas teorias semióticas, veremos que este aspecto da hipótese se rebate sobre as perguntas da metafísica, sobretudo quando elas dependem de um certo valor que atribuímos aos conteúdos de nossa percepção: de um ponto de vista lógico (ou semiótico), aquilo que chamamos de conteúdo de uma experiência sensorial já se inscreve na ordem dos predicados, no momento mesmo em que falamos sobre estas coisas, o que significa que nossos juízos perceptivos já assumem, na sua origem mesma, a forma de uma conjectura sobre a realidade. Antes mesmo de nos lançarmos a qualquer demonstração sobre fatos (quando introduzimos, então, os testes indutivos), já estamos raciocinando, em hipótese, sobre seus modos de ser, as classes e idéias a que pertencem, e coisas que tais.
  1. Mais importante ainda, esta faculdade discriminadora pode ser adestrada, como uma capacidade a partir da qual podemos resolver determinados tipos de questões (como resolver um crime ou diagnosticar uma doença): a resolução de problemas desta natureza requer dos sujeitos uma considerável sensibilidade para os detalhes manifestos de tudo aquilo que tenha correlação com o caso que tentamos determinar (quem cometeu um crime cujas pistas são notáveis, que doença se manifesta por tais e tais sintomas); no caso dos diagnósticos, um fato insignificante (um movimento involuntário, uma marca no corpo do paciente) se adiciona a tudo aquilo que se pode recolher do histórico médico e dos testemunhos do paciente, para se firmar uma idéia do mal de que alguém é acometido. Alguns historiadores falam com vagar sobre como esta idéia da atenção ao detalhe compõe o discurso de uma certa epistemologia das ciências humanas, nos dois últimos séculos.

· Guinzburg, “Sinais...” (a questão de método)

  1. Na base de todo este modelo conjectural (que não diz respeito apenas às propriedades do discurso das ciências, mas também aos movimentos da subjetividade e de seus esquemas conceituais), vemos posta em jogo toda uma ordem de pressupostos que temos sobre o caráter determnado dos objetos de nossa cogitação. Ora, na estrutura da hipótese, como vimos, é um certo modo de manifestar a relação do existente com nossos esquemas de referência, que se manifesta com toda força. Se a compreensão inferencial é algo que se manifesta na origem mesmo de nossos juízos perceptivos mais elementares, então agora é o caso de explorarmos como o conceito mesmo de signo, em Peirce nos permite explicitar esta dependência do existente com respeito aos limites de nosso entendimento.
  1. Como é que esta caracterização da estrutura da hipótese coloca em jogo a função própria aos signos? Em primeiro lugar, tudo isto implica um certo modelo de crítica ao poder fundador da introspecção e da intuição como matrizes da orientação de um conhecimento seguro: em certos escritos dos anos 60 do século XIX, Peirce identifica no assim chamado “espírito do cartesianismo” a postulação de certas faculdades inerentes aos modos humanos de cogitar a realidade, e que teriam por raiz a nossa capacidade de conhecer realidades interiores e exteriores, de maneira direta. Opondo-se a uma tal idéia, a conseqüência que Peirce extrai da rejeição sobre os poderes da introspecção e da intuição é a seguinte: já que não temos conhecimento de nós mesmos a não ser por produzirmos hipóteses sobre o mundo interior a partir do conhecimento sobre fatos exteriores; e se fatos exteriores são conhecidos por derivação de cognições anteriores, então nos é impossível pensar sem signos.
  1. Nos resta, entretanto, examinar ainda como é que estas questões se rebatem sobre o conceito mesmo de signo, em Peirce, e o modo como nele se expressam esta indissociabilidade entre o pensamento e a significação. Vejamos como isto se dá: supondo que nosso conhecimento da realidade implique o modo proposicional (pensar é relacionar os objetos do pensamento numa ordem predicativa), o objeto de nossas cogitações é algo de presente sobre o qual se diz ou pensa alguma coisa; na perspectiva clássica da formulação deste problema, pensar é inscrever um sujeito singular à ordem na qual um conceito o qualifica, como predicado. Esta união não é apenas sintática, mas sobretudo lógica: é necessário que aquele sobre o qual se predica seja menos geral do que o conceito que subsiste ao predicado.
  1. Pois bem, nesta estrutura em que pensar é atribuir caráter geral a um ente, há que se considerar o modo como se constrói este remetimento entre o singular e o abstrato, em três níveis variados: em primeiro lugar, o conceito sob o qual o predicado exprime aquilo que se diz de um sujeito manifesta a qualidade mediante a qual este mesmo sujeito é pensado na ordem do juízo; avançando um pouco mais adiante, devemos reconhecer que a qualidade como referência é sempre uma resultante do modo como alguma coisa é pensada sob esta mesma qualidade; enfim, a relação entre a qualidade e aquilo que em que ela se encarna implica a idéia de um termo mediador pelo qual esta junção possa ser pensada.
  1. Pois bem, estas são as três referências que constituem a base na qual Peirce define a estrutura do signo, enquanto matriz de todo raciocínio: a qualidade na qual se exprime o objeto da primeira referência, constitui seu fundamento (a idéia de que o signo é primeiramente constituído por um aspecto qualquer que se destaca do sujeito da proposição, quando dele cogitamos: uma cor, uma forma, um som, um movimento dos corpos, uma imagem, uma lembrança);
  1. Em segundo lugar, o fato de que esta qualidade referida pelo predicado é o aspecto mais concreto do objeto de nossas cogitações (a matéria que contém as propriedades aspectuais, o extenso corpo no qual o movimento se inscreve, o referente concreto de uma imagem, o motivo que suscita a recordação);
  1. Finalmente, a idéia mediadora entre as qualidades e os corpos extensos, que constitui-se como o significado que atribuímos a esta junção, à qual Peirce designa como o interpretante de todo signo (o valor estético, dinâmico, semântico ou afetivo que atribuímos à junção das cores e formas, dos objetos de nossas lembranças e reconhecimento).
  1. Se nosso pensamento se estrutura sobre uma base inferencial de implicações, é porque esta mesma base reflete uma estrutura mais profunda, que é a do funcionamento dos signos mesmos. Isto significa que, na ordem de nossas cognições, aquilo que é “objetivo” ou “subjetivo” só o é assim relativamente a um sistema de referências e de crenças, cuja estrutura de funcionamento é da ordem dos signos, isto é: aparece sob a forma de uma substância individual designada por seu conceito (como no predicado), ou como um fundamento (de ordem material ou não) que aponta para um universo de referência (um objeto), gerando uma lei ou um hábito inferencial, ou ainda um significado proposicional (um interpretante). Examinemos esses conceitos em detalhe, em seguida.
  1. Na estrutura em que os signos são definidos como “veículos” de um pensamento, a ocorrência de um signo é sempre relativa a outro signo, do mesmo modo que cada cognição que temos é reportada por cognições anteriores: nesse sentido, um signo é inseparável do significado global pelo qual ele se exprime ou, como afirma Peirce, o signo é inseparável do caráter interpretativo do pensamento. Esse aspecto define o interpretante como um componente da definição peirceana do signo: numa perspectiva mais genérica, podemos dizer que essa parte do conceito se reporta ao que chamaremos, mais adiante, de conceito semiótico do significado.
  1. Para além de ser relativo a outro signo (que se exprime, na relação com o primeiro como sendo seu significado), o conceito peirceano de signo implica uma alteridade, no plano dos objetos do pensamento: um signo se reporta a outro objeto que não aquele pelo qual ele exprime enquanto tal: há algo externo ao signo, e do qual ele não separa, na condição de signo; Peirce designa esta parte do conceito de signo, como sendo o objeto do signo. Finalmente, naquilo que é próprio ao signo enquanto veículo de representações, são certos aspectos que definem o modo como ele se reporta aos objetos e aos significados que lhe correspondem, e aqui falamos das propriedades ou qualidades intensionais do signo, a que Peirce define como sendo o fundamento de todo signo.

Referências Bibliográficas:

Eco, Umberto. “Signo e inferência”. In: Semiótica e Filosofia da Linguagem;

Peirce, Charles Sanders. “Algumas conseqüências de quatro incapacidades”. In: Semiótica.

Itens de leitura para a próxima aula:

Barthes, Roland. “Significado/significante”. In: Elementos de Semiologia;

Eco, Umberto. “Signo e inferência”. In: Semiótica e Filosofia da Linguagem;

Saussure, Ferdinand de. “Princípios gerais”. In: Curso de Linguística Geral;

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